Caminhos de Minas
Locomotiva Alco 2-8-2 conservada pela Prefeitura de Corinto, MG
omeçou por Minas Gerais a pesquisa de campo do Projeto Memória Ferroviária, que vai registrar e catalogar as locomotivas a vapor de todo o Brasil. A equipe formada por Sérgio Martire, um dos maiores especialistas em locomotivas a vapor do Brasil, e pelo renomado fotógrafo Américo Vermelho, visitou 30 cidades em 20 dias e registrou presença de 56 máquinas. Quando o trabalho estiver completado, o resultado será editado em um livro de arte, incentivado pela Lei Rouanet. Uma iniciativa da empresa Notícia & Cia com o apoio da Revista Ferroviária e o patrocínio da Usiminas Mecânica, Cia. Siderúrgica Nacional, Amsted-Maxion, Caramuru, SKF e GE e também de 55 pessoas físicas.
O Estado de Minas possui o segundo maior acervo de locomotivas a vapor depois de São Paulo.No País inteiro, os responsáveis pelo projeto estimam que existam hoje cerca de 450 máquinas, quase todas importadas da Inglaterra, EUA, França e Alemanha. Um raro exemplo de locomotiva fabricada no Brasil foi encontrado pela equipe em Divinópolis: a 340, da Rede Mineira de Viação, ostentando orgulhosamente uma placa com os dizeres: “construída nas oficinas de Divinópolis, 10-12-1942”. A guerra, na época, dificultava a importação.
A largada foi dada em 21 de fevereiro e a primeira parada foi em Além Paraíba, que abriga a locomotiva mais antiga de Minas: a Baldwin 51 da EF Leopoldina, fabricada em 1880. Outra curiosidade foi encontrar uma Orenstein & Koppel alemã originária da EF Perus Pirapora, montada sobre seus eixos e braçagens originais mas com dois eixos rodoviários adicionados. A locomotiva está em estado de marcha e com a invenção pode circular sobre trihos ou ser rebocada fora deles.
Em Santos Dumont a equipe encontrou a famosa Zezé Leone, abandonada num depósito fora de uso da Rede Ferroviária. Zezé Leone foi a primeira Miss Brasil, eleita em 1922, em plena celebração dos 150 anos da Independência. A bela foi também homenageada pelo fox-trote “Vênus”, de Freitinhas, e por uma receita de sobremesa. Já a locomotiva foi presente do rei Alberto da Bélgica, que aqui esteve para os festejos e durante muitos anos tracionou o noturno Cruzeiro do Sul, da EFCB, entre o Rio e São Paulo. É uma Alco 4-6-2, bitola de 1,60 m, fabricada em 1920 com número de série 63533 e matrícula 370.
Como não havia ninguém tomando conta, a equipe foi obrigada a explorar sozinha, o que, de acordo com Américo Vermelho, tornou-se uma constante durante as visitações. “Muitas locomotivas estão abandonadas, sem qualquer vigilância. É difícil até mesmo localizar os proprietários para pedir autorização para fotografar”.
Em São João del Rei está concentrado o maior número de locomotivas no estado. Ao todo são 19 máquinas, 15 delas reunidas em uma mesma rotunda. Uma das locomotivas, uma Henschel, não estava incluída na listagem original, mas foi localizada pela equipe. A descoberta pareceu ter instigado o espírito desbravador da dupla, que percorreu, sem êxito, a cidade de Conselheiro Lafaiete em busca de um guindaste a vapor. “Eu recebi essa informação sobre a existência da locomotiva e fui atrás”, diz Martire, “Mas ainda não desisti”.
Um determinado assédio da mídia parece ter confortado os dois depois da busca sem sucesso. Eles foram entrevistados pela ex-miss Minas Gerais Juliana Lejoto, hoje repórter da TV Lafaiete. O interesse que o projeto despertou na imprensa acabou por se tornar um capítulo à parte na expedição. As matérias veiculadas na televisão sobre o projeto anunciavam os próximos destinos e, não raro, ao chegarem a uma nova cidade, Martire e Vermelho eram reconhecidos nas ruas: “Ei, eu te vi na televisão!”.
A equipe: o fotógrafo Américo Vermelho e o especialista Sérgio Martire |
Martire admite ter se surpreendido com o estado de conservação da frota mineira, com cerca de 80% das máquinas em bom estado. A maior parte das locomotivas está sob a responsabilidade das prefeituras locais. A Acesita, Usiminas e Holcim (ex-Ciminas) também abrigam locomotivas em seus terrenos.
Um local que decepcionou o especialista foi a cidade histórica de Ouro Preto. “Ouro Preto é um dos principais destinos de Minas, a cidade com maior fluxo de turistas e foi onde encontramos as locomotivas menos conservadas. Um paradoxo”. Outra decepção foi encontrar em péssimo estado a Mariquinha, uma Baldwin 0-4-2 fabricada em 1894, locomotiva que participou da construção da cidade de Belo Horizonte. “Acho que pela sua importância”, diz Martire, “a Mariquinha deveria ter sido tratada com maiores cuidados”. A máquina está no Museu Abílio Barreto, em BH.
Mas houve compensações. Em Corinto a dupla encontrou uma Alco de grande porte, uma 2-8-2, em excelente estado, disposta sobre uma plataforma elevada nos fundos de um depósito da RFFSA.
“A altura da plataforma dificultou o acesso à máquina, funcionando como uma proteção às depredações”, explica Martire.
Outra surpresa eles teriam à noite, quando um colaborador entusiasmado os procurou no hotel. Tratava-se de um ferroviário aposentado chamado Moacir, que tinha participado do processo de restauração da Alco e que hoje é radialista em um programa esportivo na rádio local. Além de contribuir com muitas histórias e informações preciosas, o ferroviário ajudou o fotógrafo a localizar a placa de identificação da locomotiva. “A placa estava do lado oposto ao que tivemos acesso, meio escondida. Com a dica dele, pude voltar lá e fotografar”, conta Vermelho.
Depois de muitas cidades e dezenas de locomotivas, a viagem terminou em Passa Quatro. Alí estavam sendo realizadas as filmagens da minissérie Mad Maria, produzida pela Rede Globo, o que gerou um movimento incomum na cidade. Figurantes – em busca de R$ 30 de cachê mais um almoço – circulavam pelas ruas vestidos de trabalhadores indianos e de coolies. Os produtores trocaram a placa de identificação da Estação Passa Quatro por outra com a inscrição Porto Velho e também “maquiaram” uma locomotiva da ABPF, uma Pacific da Baldwin, com as iniciais da EF Madeira-Mamoré, incorrendo em um erro histórico. De acordo com Martire, as locomotivas da Madeira-Mamoré, assim como a máquina da Noroeste do Brasil utilizada no início das filmagens, em Rondônia, “eram de uma classe muito menor do que a utilizado agora”. Diferença a que a grande maioria dos telespectadores não dará grande importância.
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